O suposto problema do cálculo econômico no socialismo exposto por Mises e Hayek deriva de uma deturpação tola de como uma economia socialista bem consolidada funcionaria (favor evitar mencionar os países ditos socialistas porque eles nada têm a ver com a ideia aqui apresentada, críticas fora da ideia teórica - até então virgem - serão ignoradas, obrigado). A tese ridícula de que sem mercado competitivo não há formação de preços é ilusória, pois não é o sistema de múltiplos ofertantes e/ou demandantes quem estabelece uma dinâmica de formação e estabelecimento de preços real, mas a própria escassez em si, a partir da qual o socialismo tende a orbitar.
A formação de preços no socialismo não deriva de uma imposição bêbada de preços para bens e serviços. Se você pegar as críticas de Cläre Tisch, James Yunker, David McMullen, Oskar Lange, Abba Lerner, Leonid Kantorovich, Fred Manville Taylor, Maurice Dobb às teorias de Mises, você vai perceber que eles são uníssonos em mostrar que o problema de ver o socialismo com olhar capitalista é um grande equívoco (inclusive nas tréplicas de Mises e Hayek), pois as condições são paralelas as de uma economia de empresas privadas no capitalismo. Tal como a CPP num monopsônio é estabelecida sem anomalias econômicas (e também o mesmo ocorre no socialismo) excetuando-se a própria intervenção de terceiros, por vezes desumana. A monopolização quase total de certas atividades produtivas levará a tangente econômica para outro orbe, de modo que é preciso diluir esta configuração social e ilustrar outra, pois uma vez que o sistema de preços é estabelecido mediante a dinâmica da própria escassez, esta empresa que sofre intervenção externa no sistema de preços, o faz, mas esta intervenção deriva de um sistema social configurado para orbitar em torno dos trabalhadores (e esta é a chave de leitura primordial sem a qual um entendimento do socialismo é impossível). A empresa, no socialismo, produz PORQUE o trabalhador (enquanto unidade da demanda final) precisa consumir, porque o trabalhador precisa trabalhar e investe em tecnologia para que o trabalhador possa cada vez mais degustar do ócio e de melhores vencimentos, coleta impostos porque o trabalhador precisa estudar, ter acesso à hospitais, asilos, creches, orfanatos. De modo que o norte da intervenção dos preços é sua constante e progressiva diminuição - tal como da própria labuta do proletário - ressalvadas o suprimento farto ao máximo da escassez do produto em questão. Assim, o cálculo econômico não deriva burramente de uma arbitrariedade governamental, mas apenas - e isto é fato - passa a sofrer influências de fatores outros (que neste caso são positivas à própria sociedade, eis a questão). O teorema de Lange-Lerner basicamente restringe-se a explicar a teoria socialista aos seus deturpadores, está claro que as posses expropriadas dos bens de capital conduziriam naturalmente o capital às empresas públicas como um todo em um dividendo social e um Conselho Central de Planejamento (CPB) que não se furtariam de analisar especificidades de cada espaço geográfico (assim como o preço do óleo da Petrobrás não é o mesmo no Nordeste e no Sudeste) e estabeleceria preços inferiores ao custo marginal (como bem lembrou James Yunker) justamente para contemplar a alocação no mercado de insumos de capital e esta margem de ampliação de benefícios aos produtores (trabalhadores) que é, afinal, o propósito do socialismo.
Então, quando empresas como Alliance One Tabacos Ltda e Universal Leaf Tabacos Ltda compram tabaco em folha de ±17 mil produtores rurais locais em Santa Cruz do Sul (RS), ambas deterão, claro, a prerrogativa de ditar de maneira imperativa o estabelecimento do preço da folha a esses produtores, a economia socialista também detém tal poderio impositivo, é fato, mas o estabelecimento de preços aqui orbita não em torno, como na Alliance One Tabacos Ltda e Universal Leaf Tabacos Ltda do lucro privado ou estatal (e aqui reside a falácia de falsa analogia de Hayek e Mises), pois ambos os sistemas são incomparáveis neste quesito (e isto Karl Polanyi e David McMullen explicam perfeitamente). Os trabalhadores produzem pra si mesmos e não para a iniciativa privada ou para o Estado, no socialismo. Essa produção orbita em torno de suprir a escassez dos trabalhadores e dar-lhes atividade remunerada. Os lucros de Estado são postos em terceiro plano (e, ao serem coletados, destinam-se aos trabalhadores) e as transações entre empresas implicam não em permutas de propriedade privada, como no capitalismo, mas de meras transferências de propriedade social entre seus depositários (porque é só por isso que eles são coletados). Quando os trabalhadores convencionam aumentar o preço da margarina em 5 centavos para que em 10 anos haja capital suficiente para despoluir o Rio Pinheiros, isso não transforma o estabelecimento do preço do bem em questão artificial, mas apenas que este fora influenciado por diferentes fatores que não a mera lógica da ganância lucrativa de um indivíduo privado isolado.
A produção racional, portanto, não deriva de um ponto de equilíbrio em que o ofertante é um ente com interesses isolados que tem reivindicações particulares que precisam ser, em certo grau, atendidas e ceder, em certo grau, à reivindicações dos demandantes no ponto de equilíbrio.... ao contrário! O ofertante é nada menos do que o conjunto uníssono dos próprios demandantes, pois não há mais antagonismo de classes e agora, no sistema a que nos referimos, todos têm os mesmos interesses dentro da única classe que restou, os trabalhadores. Explicando melhor: O ponto de equilíbrio liberal ocorre com um indivíduo privado com interesses privados produzindo os bens de consumo que os demandantes irão adquirir a partir de interesses privados. O ponto de equilíbrio socialista orbita em torno de os próprios demandantes produzindo para si mesmos, o equilíbrio ocorre quando a escassez é suprida, somando-se os custos do processo produtivo. Tarzan está deitado no seu galho de árvore e descansa. De repente, sente fome, mas não tanta a ponto de sair e procurar alimento. Ele prefere descansar, em lugar de se movimentar, num esforço para satisfazer a fome que é uma necessidade pequena, ainda. Porém, à medida que o tempo passa, a fome aumenta e num momento qualquer ele se levanta e vai pescar. Tarzan pesca porque quer comer e não pra lucrar (a menos que você entenda o suprimento da necessidade como lucro). O mesmo ocorre com o socialismo, a produção existe porque a demanda existe, pela demanda. Se inventássemos robôs pra produzir para nós, ficaríamos todos em casa apenas recebendo salário e degustando do ócio porque é este o norte socialista. O planejamento da empresa orbita em torno de suprir a escassez presente e futura, portanto, a renda dos cidadãos economicamente ativos e daqueles em situação de vulnerabilidade observados pelo assistencialismo socialista iriam ser pensados para ser contemplados pelos preços de ajuste do Estado iguais ao custo marginal, de modo a compensar os fatores de produção, incluindo o trabalho.
Dito isso, é muito importante que expliquemos o seguinte: quando falamos em planejamento, não estamos falando (como no tolo pensamento que Mises tinha em mente), de um burocrata barbudo e bêbado, imponente com o seu título de “alto comissário do povo para roupas de baixo”, decidindo a cor e o formato único de todas as calcinhas e cuecas disponíveis para você usar e mandando cartas e mensagens por telégrafo para cada fábrica para comunicar a meta de produção dessas calcinhas e cuecas para os próximos 5 anos para cada uma. Estamos falando é de um sistema dinâmico, automatizado, que utilize os dados de demanda das compras (ou pedidos) dos cidadãos por bens e serviços para alimentar sistemas que calculem a alocação mais eficiente desses recursos, mais apropriada ecologicamente, gerando o menor tempo possível de trabalho humano, para sanar as necessidades e desejos humanos, segundo parâmetros gerais definidos democraticamente. Não estamos falando de planos mirabolantes se arrastando por anos, imutáveis no papel e incapazes de adaptação, e sim de metas flexíveis, que poderiam ser atualizadas todos os dias, talvez até mesmo várias vezes ao dia, segundo as variações na realidade por mudanças na demanda ou por novas possibilidades de produção - pense na operação diária do controle aéreo nos aeroportos, na operação diária dos sistemas de informação de uma grande empresa global.
Pense menos na Gosplan soviética, e mais em Uber, Google, Amazon, Walmart, Nasa, Visa, MasterCard. Como defendem Leigh Phillips e Michal Rozworski no livro People’s Republic of Walmart, as maiores multinacionais globais já são gigantes do planejamento econômico centralizado, verdadeiras economias planejadas, muitas vezes maiores do que as economias da maioria dos países - só que planejadas em nome da multiplicação do lucro, do crescimento infinito irracional (e descoordenado em termos humanos e naturais) e do poder dos acionistas. A infra-estrutura tecnológica que prenuncia um sistema de planejamento não apenas é possível, como já existe e é largamente utilizada. O diferencial notório é que esses conglomerados operam pela lógica do lucro mórbido, sem qualquer direcionamento que rume para os objetivos que a sociedade deseja alcançar e, muitas vezes, opondo-se a eles.
Paul Cockshott e Allin Cottrell analisam as teses anti-socialistas de Mises e de Hayek e em como suas posições são rebatidas não apenas pelo avanço e sofisticação do Centro de Operações de um Estado como a China (que eles não defendem) e que manipula todas as áreas da vida econômica para direcionar a produção aos fins a que desejam chegar (deslocando o país da terra arrasada que era ao patamar da segunda maior economia mundial em questão de décadas), como também está entranhado na própria organicidade dos grandes conglomerados do mundo capitalista, tudo a partir do uso que só é aprimorado pelo avanço da Ciência, T.I. e até I.As..
Demonstram como o uso de algoritmos pode e é utilizada para planejar toda a produção de produtos e serviços (tanto os itens finais quanto os bens intermediários) necessária para atender a demanda revelada pelas compras (ou pedidos) de todos os cidadãos. Lembrando que a maior parte do trabalho desses autores é anterior à expansão da internet e das bases de dados monstruosas hoje exploradas pelas técnicas de big data pelas grandes empresas. Há autores mais recentes, como Evgeny Morozov, que analisam o potencial das técnicas de big data para o cenário do planejamento socialista, mas não focaremos nisso.
A ideia aqui é apenas e tão somente mostrar que é totalmente apressada, superficial e espantalhosa a ideia de planejamento associado a tais princípios equivocados de "valor-trabalho" ou de que longe de o tal problema de o cálculo econômico ser um 'xeque-mate', passa longe de encerrar algum debate sobre as possibilidades do socialismo, sendo a reprodução do que seria esse problema e de como seria um esquema de planejamento democrático, mero anacronismo e emulação de ideias ultrapassadas, de outra época. Há rascunhos de algoritmos que podem ser utilizados para balancear dinamicamente as metas de produção de bens e serviços segundo o consumo da população e o arranjo de processos produtivos disponíveis a cada momento, demonstrando inclusive a possibilidade de atualização diária desses indicadores se necessário. Não se trata de mero salto de imaginação - os estudos de ambos entram inclusive na questão da "eficiência" dos mercados, diante de modelos automatizados de alocação segundo as propostas dos autores, diante dos avanços da Ciência da Computação e da comunicação nas últimas décadas (que, inclusive, objetam Hayek sobre ruminações envolvendo o conhecimento).
Ninguém falou de algum tipo de "comitê iluminado" que definiria toda a produção de todos os produtos e serviços, e sim da identificação que se previa rumar para a automatização de demanda e da elaboração de planos de produção condizentes com os mesmos, com ajustes definidos tanto pelas mudanças na demanda da população, como na identificação de novos métodos de produção e na disponibilização de novos produtos e serviços. É óbvio que ninguém pode ter todas essas informações na cabeça (assim como provavelmente nem o quitandeiro da esquina possui informações claras sobre a sua demanda de frutas e verduras na cabeça dele, apesar de, às vezes, decorar uma coisa ou outra que você costuma comprar demais), mas isso também não é o que ocorre nos sistemas atuais, no modelo de administração atual - ou alguém imagina que um presidente de uma mega-empresa multi-nacional tem todos os dados sobre as inúmeras operações diretas ou de subsidiárias da sua empresa na cabeça dele? É óbvio que não tem e não pode ter, mas isso não impede que exista um modelo de administração dessa empresa. O mesmo se dá com qualquer processo de produção mais complexo: “Literalmente ninguém sabe quais peças entram na produção de um A340. Essas informações, vastas demais para um ser humano manipular, estão armazenadas em um banco de dados relacional. Em um estágio anterior do desenvolvimento industrial, elas teriam sido tratadas através de um complexo sistema de registros no papel. Novamente, o conhecimento seria objetivo – residindo em objetos e não em cérebros humanos. A própria possibilidade de uma atividade industrial coordenada em larga escala se baseia na existência de tal informação objetivada.” - Cottrell.
Ressalte-se aqui que não levamos em consideração a possibilidade de "tentar adivinhar" a demanda individual de ninguém (e sim o uso dos dados agregados das próprias compras dos indivíduos para estabelecimento da demanda), mas os algoritmos atuais do Google, Facebook e do Amazon já demonstram que mesmo esse caminho, pelo menos em termos gerais, não é algo tão absurdo ou próximo da bruxaria quanto os críticos anacrônicos dessas propostas gostam de pensar. Mas enfim, recapitulando: não tem nada de magia/telepatia/adivinhação na proposta de um modelo automatizado de planejamento de produção, apenas aplicação de tecnologias já disponíveis e amplamente utilizadas. Se isso não fica claro pra você, é só porque você está olhando para a realidade atual com os óculos de autores propagandistas de 50, 60, às vezes até 200 anos atrás - e forçando a barra para que tudo pareça se encaixar, de alguma maneira.
Se, é verdade que a utilidade marginal é subjetiva, por outro é igualmente verdade que nenhum empreendedor lê a mente dos consumidores para intuir demanda por games, camiseta de super-herói, lanchinho gourmet e Nutella. Não é como se o consumidor imaginasse seus itens de desejo em cada momento e, magicamente ou telepaticamente, as compras são realizadas e os itens se materializam na sua casa. Existe um sistema robusto informal nas micro relações e que opera com grandes processamentos de pesquisa de opinião, de consulta, de preço e de balanço de vendas, efetuado via mediação tecnológica de vários sistemas interligados - no mínimo do mínimo o sistema do Carrefour/Amazon/Riachuelo/padaria da esquina/etc. onde está sendo feita a compra (se ela estiver sendo paga em dinheiro), mas na maioria das vezes também o da Visa/MasterCard/Nubank/etc. O que isso significa? Significa que nada menos que a demanda e compra que emana de preferências subjetivas, supostamente tão impossíveis de serem lidas/computadas/usadas-como-fontes-de-dados, não é algo que só o quitandeiro da esquina conhece, mas sim algo que JÁ ESTÁ servindo como fonte de MUITA INFORMAÇÃO para muitos sistemas - começando por esses primeiros sistemas envolvidos diretamente na transação, mas seguindo por toda a cadeia logística que esteja integrada aos sistemas deles, e potencialmente muitos outros. Você faz uma compra de um tênis no shopping, e essa compra vai gerar mensagens para atualizar o sistema do banco/operadora do cartão, para o sistema da loja, para o sistema do fornecedor da loja (para garantir que o estoque disponível não fique desfalcado por muito tempo), para o fornecedor do fornecedor, para atualizar os pedidos para a fábrica - e potencialmente até para a própria fábrica para indicar ajustes na produção, etc, etc. Como Leigh Phillips e Michal Rozworski indicam no livro "People's Republic of Walmart", foi justamente essa revolução logística gerada pela integração informacional de toda a cadeia logística o diferencial essencial dos processos da Walmart, que o fez dominar o mercado dos hipermercados nos EUA.
Só mesmo um inocente útil para acreditar mesmo que é por magia que a Amazon recomenda justamente os livros geek que o consumidor quer ler ou os bonequinhos que gostaria de ter em sua estante. A ideia aqui desde o seu nascedouro é refletir sobre os efeitos e possibilidades criados pelo avanço tecnológico (como a universalização do acesso à internet e dos sistemas de bancos de dados na administração do meio empresarial para o potencial da alocação dos recursos segundo as necessidades humanas) por mecanismos que partam da integração agregada dos dados sobre a demanda da população, de acordo com suas compras/pedidos (ou seja, se padronizarmos e integrarmos as informações QUE JÁ ESTÃO SENDO REGISTRADAS NOS BANCOS DE DADOS DAS GRANDES MULTINACIONAIS OU QUE SERIAM FACILMENTE INCLUÍDOS NELES POIS JÁ SÃO REGISTRADOS NAS OPERAÇÕES DE COMPRA E VENDA) para, então, estabelecer o padrão de consumo atual a cada momento e estimar a demanda final da população por cada produto e serviço em cada período. Alimentar os processos de produção em cada núcleo de produção passa a ser algo completamente dentro da nossa capacidade tecnológica atual. Então, não, rs, os algoritmos não vão precisar de mais superpoderes além dos que já possuem e já são utilizados atualmente. De modo que criamos alternativas ao sistema atual que conserva seus -prós e elimina os vícios e contradições inerentes a ele. Enquanto isso, vai ter seguidores de Mises e Hayek ainda falando sobre como seria impossível “concentrar todo o conhecimento” necessário, sobre como o “conhecimento tácito”, por definição muito localizado e específico, impediria que mesmo sistemas computadorizados de alocação de recursos pudessem fazer isso com eficiência. Parece ou não parece anacronismo? Parece ou não parece que estamos, em 2019, tentando responder a gente cujas ideias e questionamentos estacionaram em 1969, se não em 1949? Como se fôssemos máquinas de cálculo hiperracional para comparação e julgamento de produtos e serviços; como se não fossemos o tempo todo passíveis de manipulação de desejos, como se essa não fosse a base da publicidade e do marketing que nos bombardeiam o tempo todo nos meios de comunicação. Afirmam que não seria possível agregar a demanda das compras de produtos finais num nível suficiente para re-alimentar as metas de produção das indústrias, como se isso não tivesse nada a ver com os modelos JÁ EXISTENTES de logística just-in-time e com os modelos de negócios de gigantes do varejo que transformaram a forma com que as pessoas fazem as suas compras, em hipermercados ou online. Sistemas centralizados de processamento de informações alimentados por sistemas descentralizados de captação de dados - como se não tivéssemos a internet em cada celular e as compras de cartões de débito e de crédito em qualquer esquina; como se isso JÁ não estivesse alimentando sistemas monumentais com os dados de bilhões de pessoas, transações econômicas, pesquisas, interesses e deslocamentos, para disponibilizar serviços de bancos, pesquisas na internet, recomendações, alocação de corridas e de caronas de carro, apartamentos, etc, etc. - todos processados centralmente em servidores de capacidade astronômica (boa parte concentrados nas empresas do Vale do Silício, na Califórnia) e enviados para o uso descentralizado por bilhões de pessoas por todo o globo.
Dessa forma, ninguém vai precisar estabelecer/adivinhar planilhas infinitas de comparação da "utilidade marginal" de cada item existente, para cada indivíduo existente, como pensam ser necessário os defensores da teoria econômica marginalista. Lembrando que, daqui, dá para puxar o fio para estender as críticas ao sistema mostrando como esses conglomerados não simplesmente suprem as necessidades, eles também as criam e produzem padrões de consumo que destoam gravemente de qualquer sensatez no que se refere ao bem da humanidade pensada no todo, mas aqui nos estenderíamos demais, para quem quiser se aprofundar, o livro Capitalism de Anwar Shaikh tem um apanhado extenso dessas críticas, com indicações de leitura complementar sobre cada crítica, sobre cada aspecto. Já vemos se desenhar a capacidade da tecnologia de não apenas conhecer o cérebro e decodificá-lo no panorama da Tecnologia da Computação, mas também como conglomerados como Facebook, Apple e Google conseguirão em 10, 20 ou 30 anos monitorar os corpos com sensores biométricos, registrar esses dados e, com algoritmos sofisticados, analisá-los (falamos somente sobre eles) para saber quem é o consumidor, sua personalidade, suas preferências, quais respostas provavelmente daria a uma pergunta, etc.
Não se trata de (1) propor um modelo com métodos de produção e demanda estáticos, muito menos um em que a descoberta de novos métodos de produção ou adaptação a alterações de demanda seja inibida, mas sim na apresentação de um esquema dinâmica em resposta às alterações de demanda, com apresentação de mecanismos para identificar indústrias que precisem ser reduzidas ou aumentadas, segundo o consumo da população. (2) ampliar o potencial de inovação do sistema atual, diluindo suas limitações e contradições.
Se por um lado a administração de um país precisa envolver variáveis com as quais as empresas hoje não precisam se preocupar, tornando o sistema mais complexo, por outro as empresas multi-nacionais mais gigantescas precisam trabalhar com o planejamento de suas operações, com a definição de planos, metas e ajustes de suas operações gigantescas para buscar atingir esses planos. Estamos falando de empresas que movimentam mercadorias, operações físicas e virtuais, e quantidades de dinheiro que deixam o PIB da maioria dos países na sombra, de longe. Tampouco centralizamos a administração da Economia e, mais do que isso, do próprio Estado, em um Juche, líder, Führer ou Presidente, mas sim em sovietes coordenados que são descentralizados e dinâmicos, como é a própria sociedade. No mais, os autores citados já apresentam algoritmos para realizar o balanceamento das metas de produção dos bens de consumo e dos bens secundários necessários para a sua produção - que representa o nexo ausente na definição de metas de produção no nível de toda a economia para atender às necessidades da população, ao invés das metas hoje estabelecidas por cada empresa para tentarem realizar o máximo de lucro para seus acionistas. Essa é uma possibilidade acessível à humanidade que só cresce e se aperfeiçoa a medida em que evoluímos.
Concedemos, contudo, que a falácia do espantalho, mitos e ideias prontas e anacronismo grosseiro sobre a História das experiências socialistas do século XX não devem ter lugar aqui. Ora, mesmo os autores que indicamos como Cockshott e Cottrell (Vide Economia e Planejamento Soviéticos e as Lições na Queda) e que estudaram profundamente os sistemas que foram estabelecidos na URSS e as variações de seu sistema político e econômico em diferentes momentos históricos vão apontar problemas graves na gestão daquelas experiências, não apenas no final, mas por todo o período. Falemos brevemente disso:
Mesmo esses autores, afirmam categoricamente que um planejamento bem amarrado como o que eles propõem era simplesmente impossível até os avanços tecnológicos na área de comunicações e computação do final da década de 80. Assim, comparar essas propostas atuais com o planejamento implementado nos planos quinquenais da URSS na década de 30 e afirmar categoricamente que os resultados (supostamente totalmente negativos) seriam sempre os mesmos (necessariamente os mesmos) é um anacronismo grosseiro. Alguns autores socialistas, como Meszáros, sequer aceitam afirmar que o planejamento um tanto improvisado e precário praticado naquelas experiências teria representado realmente o potencial do planejamento socialista - não só pelas limitações no modelo de planejamento, mas também pela ausência do controle pelos trabalhadores sobre a produção e o trabalho tanto em nível local quanto em nível nacional. É um debate gigantesco, ainda em aberto.
É preciso também chamar atenção para o fato de que, apesar da experiência soviética ter se encerrado com a crise dos anos 80 e a substituição completa do sistema de produção por um modelo capitalista, isso não significa que o resultado daquela experiência teria de ser necessariamente esse, mesmo com os problemas em seu modelo de gestão. Na verdade, o nível de "sucesso" ou de "fracasso" de algo dessas proporções sempre será uma questão contraditória. Durante décadas, por exemplo, era totalmente comum deparar-se com a opinião dos economistas do ocidente de que a União Soviética havia encontrado um caminho eficiente e seguro para o crescimento em termos absolutos e relativos, um crescimento que não era abalado pelas crises que assolam o capitalismo de tempos em tempos. Por décadas à fio o crescimento contínuo da União Soviética só era superado por milagres capitalistas como o japonês (que, por sinal, depois acabou também entrando numa longa crise de estagnação da qual ainda não se recuperou).
Sim, havia muito de precário e improvisado no sistema de planejamento operado na antiga união soviética. Alec Nove estima que nos anos 70, 80 havia em torno de 10 milhões de produtos diferentes produzidos em seus países - enquanto que a Gosplan, com a tecnologia disponível na época, trabalhava com metas de produção para poucas dezenas de milhares desses produtos. Isso significa que a esmagadora maior parte dos produtos produzidos estava simplesmente fora dos planos centrais de produção. Cockshott e Cottrell já provaram como seu modelo pode dar conta facilmente de uma produção nessa escala de grandeza com a tecnologia disponível atualmente. Na verdade, para os mega-computadores mais poderosos disponíveis atualmente, as técnicas de Cockshott e Cottrell dariam conta de balancear um plano de produção para todos os itens de consumo direto ou indireto para uma economia continental em uma fração de segundos.
Apesar disso, havia a expectativa entre os analistas ocidentais de meados dos anos 60, meados de 70 que tinham expectativa de que a URSS poderia superar os EUA. Relatórios da CIA indicavam que o consumo diário médio de calorias na URSS chegou a estar apenas pouco abaixo da média estadunidense - com o adendo de que a média estadunidense disfarçava as grandes desigualdades existentes no seu interior, enquanto na URSS essa distribuição era mais homogênea - e incluía um nível de universalização da educação com o qual os EUA apenas podiam sonhar, além de empregos, saúde e aposentadoria garantidos para a população. Chegou a haver inclusive pesquisadores ocidentais decididos a provar o quanto a produtividade das empresas socialistas seriam, teoricamente, muito menores do que as suas contra-partes nos países capitalistas - mas que acabaram se surpreendendo ao descobrir que, no final, essas diferenças eram bem menores do que eles antecipavam, mesmo comparando com as empresas dos países capitalistas mais avançados, vide Socialismo, Mercado, Planejamento e Democracia de Seth Ackerman, John Quiggin, Tyler Zimmer, Jeff Moniker e outros
Mas, claro, não estamos aqui afirmando ou defendendo o modelo soviético que, aliás, nem mesmo os partidos comunistas atuais defendem. Veja, por exemplo, a análise do PCB sobre o socialismo do século XX: <https://pcb.org.br/portal/docs1/texto7.pdf>; Estamos apenas chamando a atenção para o fato de que olhar para a história soviética apenas como um fracasso generalizado é muito simplista e não dá conta de lidar com as contradições de todo aquele processo. Uma ironia final nesse sentido é demonstrada no artigo listado acima, de Cockshott e Cottrell, sobre a queda da União Soviética: foi justamente a vitória da ala à Direita do Partido no XX Congresso e a disseminação entre os burocratas soviéticos de ideais reformistas capitalistas a partir do final dos anos 70, dando origem a reformas pró-capitalistas e marcadas pela defesa da expansão do mercado, o que acabou desequilibrando de vez o funcionamento do sistema econômico soviético e lançando todo aquele processo na crise e descontentamento crescente nos anos 80, o que acabou culminando na contra-revolução do fim da URSS, entre 89 e 91.
Outro aspecto desse anacronismo é como ele simplesmente desconsidera o papel completamente central do planejamento para o próprio capitalismo, de maneira declarada (como nas décadas de maior crescimento do capitalismo, no pós-segunda guerra mundial, quando grande parte das economias capitalistas assumiram o papel de controlar diretamente ou de dar a orientação para a produção e isso se converteu inclusive em uma ideologia que se tornou central para o pensamento econômico na época, o "gerencialismo", que acreditava que, por caminhos diferentes, tanto o capitalismo ocidental quanto o socialismo soviético caminhavam na direção de organizações cada vez mais complexas e de administração profissionalizada e burocratizada) quanto de maneira mais velada (como no planejamento realizado atualmente no interior das megaempresas transnacionais ou pelos bancos de investimento), que se infiltram no Estado e o utilizam enquanto recurso escasso que é para se impor sobre a concorrência que não dispôs de mecanismos suficientes para acessá-lo.
Por fim, citando Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado: “Se estivermos falando de uma sociedade em que os meios de produção (fábricas, fazendas, empresas, equipamento pesado, núcleos de processamento de dados, etc.) forem usados em conjunto pela sociedade, em nome da satisfação das necessidades de todos (e não dos lucros de uma minoria e do crescimento infinito a qualquer custo, como na sociedade atual) então poderemos aplicar ao máximo todas as nossas tecnologias para produzir tudo de que precisamos com o mínimo de trabalho humano possível, liberando o máximo de tempo possível para todos usarmos como acharmos melhor, cultivando e perseguindo nossos interesses, produzindo e consumindo artes, avançando com pesquisas em ciências, participando de projetos coletivos e de sua implantação, praticando esportes, viajando, passando mais tempo com as pessoas que amamos, etc. Sem as amarras da necessidade do lucro, do consumismo, da expansão infinita, poderemos usar nossos recursos produtivos de maneira realmente racional, humana, democrática e sustentável, e não precisaremos abandonar ninguém à condição de "inútil" do desemprego ou da pobreza; não precisaremos manter uma sociedade de controle e repressão; poderemos expandir a liberdade para todos, e poderemos finalmente lidar com a questão do meio-ambiente e das mudanças climáticas como necessário para impedir algum tipo de cataclisma, impondo limites e transformações nos processos de produção, decididos democraticamente, de acordo com o conhecimento científico vigente - limites e transformações que o Capitalismo não pode aceitar, por que precisariam ser aplicados em alguns dos seus elementos mais centrais (autoexpansão infinita, consumismo, obsolescência planejada, etc), e que seriam necessários para lidar com isso à sério. O objetivo final deve ser a construção de um Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado; a alternativa, se não formos capazes de construí-lo, algum tipo de barbárie de exploração e de alienação - mais desnecessários ainda do que o foram nas várias etapas do capitalismo - isso para nem entrar em todas as desgraças relacionadas à aceleração das mudanças climáticas (pois, apesar da fé capitalista no crescimento e na expansão infinita ser realmente muito grande, ela não muda o fato de que o planeta Terra é um sistema finito).“
A Esquerda parte de um pressuposto: O de que o dever da Economia (enquanto estudo sistemático da escassez) é instituir um regime de Felicidade, regozijo, união e cooperativismo entre os povos... O que desembocaria numa sociedade cada vez mais coesa e preocupada com o bem-estar uns dos outros, dos animais, das plantas e do meio ambiente. Acreditamos que é preciso reinventar nossas sociedades porque o objetivo do Espírito humano não é trabalhar e entrar na rodinha do hamster. O nome disso é bestialização. O ser humano é muito mais do que um consumidor... um produto que ora usa, ora é usado. Acreditamos que é preciso transformar as engrenagens capitalistas num motor de promoção do Bem dos povos e da Felicidade de cada indivíduo... e que a evolução moral atingirá seu ápice quando os seres humanos perpetrarem uma busca incessante por maior desenvolvimento tecnológico não para competir no mercado e, sim, pra tornar o ócio cada vez mais acessível à população do mundo, que liberta do escravismo, dessa busca incessante pelo Ter ou pelo Ser. Que se possa se preocupar mais com o Bem-Estar.... Essa foi a justificativa dos políticos quando votaram para a redução da jornada de trabalho na Suécia de 8 pra 6 horas diárias.... Este é o conceito que permeia todos os nossos discursos, a busca incessante por Libertar a alma humana das amarras materialistas no aspecto de sua própria essência e vivência - o social - fazendo ascender um mundo Progressista multicolorido em que estaremos todos rodeados por diversidade, diferenças, mas, todos nos sentiremos unidos e iguais não apesar dessas diferenças, mas, sim, por causa delas.... Toda essa coesão refletirá na forma como experimentamos as relações econômicas uns com os outros e com o Estado que ergueremos sobre nós mesmos com o intuito de cuidar desse mundo.
A formação de preços no socialismo não deriva de uma imposição bêbada de preços para bens e serviços. Se você pegar as críticas de Cläre Tisch, James Yunker, David McMullen, Oskar Lange, Abba Lerner, Leonid Kantorovich, Fred Manville Taylor, Maurice Dobb às teorias de Mises, você vai perceber que eles são uníssonos em mostrar que o problema de ver o socialismo com olhar capitalista é um grande equívoco (inclusive nas tréplicas de Mises e Hayek), pois as condições são paralelas as de uma economia de empresas privadas no capitalismo. Tal como a CPP num monopsônio é estabelecida sem anomalias econômicas (e também o mesmo ocorre no socialismo) excetuando-se a própria intervenção de terceiros, por vezes desumana. A monopolização quase total de certas atividades produtivas levará a tangente econômica para outro orbe, de modo que é preciso diluir esta configuração social e ilustrar outra, pois uma vez que o sistema de preços é estabelecido mediante a dinâmica da própria escassez, esta empresa que sofre intervenção externa no sistema de preços, o faz, mas esta intervenção deriva de um sistema social configurado para orbitar em torno dos trabalhadores (e esta é a chave de leitura primordial sem a qual um entendimento do socialismo é impossível). A empresa, no socialismo, produz PORQUE o trabalhador (enquanto unidade da demanda final) precisa consumir, porque o trabalhador precisa trabalhar e investe em tecnologia para que o trabalhador possa cada vez mais degustar do ócio e de melhores vencimentos, coleta impostos porque o trabalhador precisa estudar, ter acesso à hospitais, asilos, creches, orfanatos. De modo que o norte da intervenção dos preços é sua constante e progressiva diminuição - tal como da própria labuta do proletário - ressalvadas o suprimento farto ao máximo da escassez do produto em questão. Assim, o cálculo econômico não deriva burramente de uma arbitrariedade governamental, mas apenas - e isto é fato - passa a sofrer influências de fatores outros (que neste caso são positivas à própria sociedade, eis a questão). O teorema de Lange-Lerner basicamente restringe-se a explicar a teoria socialista aos seus deturpadores, está claro que as posses expropriadas dos bens de capital conduziriam naturalmente o capital às empresas públicas como um todo em um dividendo social e um Conselho Central de Planejamento (CPB) que não se furtariam de analisar especificidades de cada espaço geográfico (assim como o preço do óleo da Petrobrás não é o mesmo no Nordeste e no Sudeste) e estabeleceria preços inferiores ao custo marginal (como bem lembrou James Yunker) justamente para contemplar a alocação no mercado de insumos de capital e esta margem de ampliação de benefícios aos produtores (trabalhadores) que é, afinal, o propósito do socialismo.
Então, quando empresas como Alliance One Tabacos Ltda e Universal Leaf Tabacos Ltda compram tabaco em folha de ±17 mil produtores rurais locais em Santa Cruz do Sul (RS), ambas deterão, claro, a prerrogativa de ditar de maneira imperativa o estabelecimento do preço da folha a esses produtores, a economia socialista também detém tal poderio impositivo, é fato, mas o estabelecimento de preços aqui orbita não em torno, como na Alliance One Tabacos Ltda e Universal Leaf Tabacos Ltda do lucro privado ou estatal (e aqui reside a falácia de falsa analogia de Hayek e Mises), pois ambos os sistemas são incomparáveis neste quesito (e isto Karl Polanyi e David McMullen explicam perfeitamente). Os trabalhadores produzem pra si mesmos e não para a iniciativa privada ou para o Estado, no socialismo. Essa produção orbita em torno de suprir a escassez dos trabalhadores e dar-lhes atividade remunerada. Os lucros de Estado são postos em terceiro plano (e, ao serem coletados, destinam-se aos trabalhadores) e as transações entre empresas implicam não em permutas de propriedade privada, como no capitalismo, mas de meras transferências de propriedade social entre seus depositários (porque é só por isso que eles são coletados). Quando os trabalhadores convencionam aumentar o preço da margarina em 5 centavos para que em 10 anos haja capital suficiente para despoluir o Rio Pinheiros, isso não transforma o estabelecimento do preço do bem em questão artificial, mas apenas que este fora influenciado por diferentes fatores que não a mera lógica da ganância lucrativa de um indivíduo privado isolado.
A produção racional, portanto, não deriva de um ponto de equilíbrio em que o ofertante é um ente com interesses isolados que tem reivindicações particulares que precisam ser, em certo grau, atendidas e ceder, em certo grau, à reivindicações dos demandantes no ponto de equilíbrio.... ao contrário! O ofertante é nada menos do que o conjunto uníssono dos próprios demandantes, pois não há mais antagonismo de classes e agora, no sistema a que nos referimos, todos têm os mesmos interesses dentro da única classe que restou, os trabalhadores. Explicando melhor: O ponto de equilíbrio liberal ocorre com um indivíduo privado com interesses privados produzindo os bens de consumo que os demandantes irão adquirir a partir de interesses privados. O ponto de equilíbrio socialista orbita em torno de os próprios demandantes produzindo para si mesmos, o equilíbrio ocorre quando a escassez é suprida, somando-se os custos do processo produtivo. Tarzan está deitado no seu galho de árvore e descansa. De repente, sente fome, mas não tanta a ponto de sair e procurar alimento. Ele prefere descansar, em lugar de se movimentar, num esforço para satisfazer a fome que é uma necessidade pequena, ainda. Porém, à medida que o tempo passa, a fome aumenta e num momento qualquer ele se levanta e vai pescar. Tarzan pesca porque quer comer e não pra lucrar (a menos que você entenda o suprimento da necessidade como lucro). O mesmo ocorre com o socialismo, a produção existe porque a demanda existe, pela demanda. Se inventássemos robôs pra produzir para nós, ficaríamos todos em casa apenas recebendo salário e degustando do ócio porque é este o norte socialista. O planejamento da empresa orbita em torno de suprir a escassez presente e futura, portanto, a renda dos cidadãos economicamente ativos e daqueles em situação de vulnerabilidade observados pelo assistencialismo socialista iriam ser pensados para ser contemplados pelos preços de ajuste do Estado iguais ao custo marginal, de modo a compensar os fatores de produção, incluindo o trabalho.
Dito isso, é muito importante que expliquemos o seguinte: quando falamos em planejamento, não estamos falando (como no tolo pensamento que Mises tinha em mente), de um burocrata barbudo e bêbado, imponente com o seu título de “alto comissário do povo para roupas de baixo”, decidindo a cor e o formato único de todas as calcinhas e cuecas disponíveis para você usar e mandando cartas e mensagens por telégrafo para cada fábrica para comunicar a meta de produção dessas calcinhas e cuecas para os próximos 5 anos para cada uma. Estamos falando é de um sistema dinâmico, automatizado, que utilize os dados de demanda das compras (ou pedidos) dos cidadãos por bens e serviços para alimentar sistemas que calculem a alocação mais eficiente desses recursos, mais apropriada ecologicamente, gerando o menor tempo possível de trabalho humano, para sanar as necessidades e desejos humanos, segundo parâmetros gerais definidos democraticamente. Não estamos falando de planos mirabolantes se arrastando por anos, imutáveis no papel e incapazes de adaptação, e sim de metas flexíveis, que poderiam ser atualizadas todos os dias, talvez até mesmo várias vezes ao dia, segundo as variações na realidade por mudanças na demanda ou por novas possibilidades de produção - pense na operação diária do controle aéreo nos aeroportos, na operação diária dos sistemas de informação de uma grande empresa global.
Pense menos na Gosplan soviética, e mais em Uber, Google, Amazon, Walmart, Nasa, Visa, MasterCard. Como defendem Leigh Phillips e Michal Rozworski no livro People’s Republic of Walmart, as maiores multinacionais globais já são gigantes do planejamento econômico centralizado, verdadeiras economias planejadas, muitas vezes maiores do que as economias da maioria dos países - só que planejadas em nome da multiplicação do lucro, do crescimento infinito irracional (e descoordenado em termos humanos e naturais) e do poder dos acionistas. A infra-estrutura tecnológica que prenuncia um sistema de planejamento não apenas é possível, como já existe e é largamente utilizada. O diferencial notório é que esses conglomerados operam pela lógica do lucro mórbido, sem qualquer direcionamento que rume para os objetivos que a sociedade deseja alcançar e, muitas vezes, opondo-se a eles.
Paul Cockshott e Allin Cottrell analisam as teses anti-socialistas de Mises e de Hayek e em como suas posições são rebatidas não apenas pelo avanço e sofisticação do Centro de Operações de um Estado como a China (que eles não defendem) e que manipula todas as áreas da vida econômica para direcionar a produção aos fins a que desejam chegar (deslocando o país da terra arrasada que era ao patamar da segunda maior economia mundial em questão de décadas), como também está entranhado na própria organicidade dos grandes conglomerados do mundo capitalista, tudo a partir do uso que só é aprimorado pelo avanço da Ciência, T.I. e até I.As..
Demonstram como o uso de algoritmos pode e é utilizada para planejar toda a produção de produtos e serviços (tanto os itens finais quanto os bens intermediários) necessária para atender a demanda revelada pelas compras (ou pedidos) de todos os cidadãos. Lembrando que a maior parte do trabalho desses autores é anterior à expansão da internet e das bases de dados monstruosas hoje exploradas pelas técnicas de big data pelas grandes empresas. Há autores mais recentes, como Evgeny Morozov, que analisam o potencial das técnicas de big data para o cenário do planejamento socialista, mas não focaremos nisso.
A ideia aqui é apenas e tão somente mostrar que é totalmente apressada, superficial e espantalhosa a ideia de planejamento associado a tais princípios equivocados de "valor-trabalho" ou de que longe de o tal problema de o cálculo econômico ser um 'xeque-mate', passa longe de encerrar algum debate sobre as possibilidades do socialismo, sendo a reprodução do que seria esse problema e de como seria um esquema de planejamento democrático, mero anacronismo e emulação de ideias ultrapassadas, de outra época. Há rascunhos de algoritmos que podem ser utilizados para balancear dinamicamente as metas de produção de bens e serviços segundo o consumo da população e o arranjo de processos produtivos disponíveis a cada momento, demonstrando inclusive a possibilidade de atualização diária desses indicadores se necessário. Não se trata de mero salto de imaginação - os estudos de ambos entram inclusive na questão da "eficiência" dos mercados, diante de modelos automatizados de alocação segundo as propostas dos autores, diante dos avanços da Ciência da Computação e da comunicação nas últimas décadas (que, inclusive, objetam Hayek sobre ruminações envolvendo o conhecimento).
Ninguém falou de algum tipo de "comitê iluminado" que definiria toda a produção de todos os produtos e serviços, e sim da identificação que se previa rumar para a automatização de demanda e da elaboração de planos de produção condizentes com os mesmos, com ajustes definidos tanto pelas mudanças na demanda da população, como na identificação de novos métodos de produção e na disponibilização de novos produtos e serviços. É óbvio que ninguém pode ter todas essas informações na cabeça (assim como provavelmente nem o quitandeiro da esquina possui informações claras sobre a sua demanda de frutas e verduras na cabeça dele, apesar de, às vezes, decorar uma coisa ou outra que você costuma comprar demais), mas isso também não é o que ocorre nos sistemas atuais, no modelo de administração atual - ou alguém imagina que um presidente de uma mega-empresa multi-nacional tem todos os dados sobre as inúmeras operações diretas ou de subsidiárias da sua empresa na cabeça dele? É óbvio que não tem e não pode ter, mas isso não impede que exista um modelo de administração dessa empresa. O mesmo se dá com qualquer processo de produção mais complexo: “Literalmente ninguém sabe quais peças entram na produção de um A340. Essas informações, vastas demais para um ser humano manipular, estão armazenadas em um banco de dados relacional. Em um estágio anterior do desenvolvimento industrial, elas teriam sido tratadas através de um complexo sistema de registros no papel. Novamente, o conhecimento seria objetivo – residindo em objetos e não em cérebros humanos. A própria possibilidade de uma atividade industrial coordenada em larga escala se baseia na existência de tal informação objetivada.” - Cottrell.
Ressalte-se aqui que não levamos em consideração a possibilidade de "tentar adivinhar" a demanda individual de ninguém (e sim o uso dos dados agregados das próprias compras dos indivíduos para estabelecimento da demanda), mas os algoritmos atuais do Google, Facebook e do Amazon já demonstram que mesmo esse caminho, pelo menos em termos gerais, não é algo tão absurdo ou próximo da bruxaria quanto os críticos anacrônicos dessas propostas gostam de pensar. Mas enfim, recapitulando: não tem nada de magia/telepatia/adivinhação na proposta de um modelo automatizado de planejamento de produção, apenas aplicação de tecnologias já disponíveis e amplamente utilizadas. Se isso não fica claro pra você, é só porque você está olhando para a realidade atual com os óculos de autores propagandistas de 50, 60, às vezes até 200 anos atrás - e forçando a barra para que tudo pareça se encaixar, de alguma maneira.
Se, é verdade que a utilidade marginal é subjetiva, por outro é igualmente verdade que nenhum empreendedor lê a mente dos consumidores para intuir demanda por games, camiseta de super-herói, lanchinho gourmet e Nutella. Não é como se o consumidor imaginasse seus itens de desejo em cada momento e, magicamente ou telepaticamente, as compras são realizadas e os itens se materializam na sua casa. Existe um sistema robusto informal nas micro relações e que opera com grandes processamentos de pesquisa de opinião, de consulta, de preço e de balanço de vendas, efetuado via mediação tecnológica de vários sistemas interligados - no mínimo do mínimo o sistema do Carrefour/Amazon/Riachuelo/padaria da esquina/etc. onde está sendo feita a compra (se ela estiver sendo paga em dinheiro), mas na maioria das vezes também o da Visa/MasterCard/Nubank/etc. O que isso significa? Significa que nada menos que a demanda e compra que emana de preferências subjetivas, supostamente tão impossíveis de serem lidas/computadas/usadas-como-fontes-de-dados, não é algo que só o quitandeiro da esquina conhece, mas sim algo que JÁ ESTÁ servindo como fonte de MUITA INFORMAÇÃO para muitos sistemas - começando por esses primeiros sistemas envolvidos diretamente na transação, mas seguindo por toda a cadeia logística que esteja integrada aos sistemas deles, e potencialmente muitos outros. Você faz uma compra de um tênis no shopping, e essa compra vai gerar mensagens para atualizar o sistema do banco/operadora do cartão, para o sistema da loja, para o sistema do fornecedor da loja (para garantir que o estoque disponível não fique desfalcado por muito tempo), para o fornecedor do fornecedor, para atualizar os pedidos para a fábrica - e potencialmente até para a própria fábrica para indicar ajustes na produção, etc, etc. Como Leigh Phillips e Michal Rozworski indicam no livro "People's Republic of Walmart", foi justamente essa revolução logística gerada pela integração informacional de toda a cadeia logística o diferencial essencial dos processos da Walmart, que o fez dominar o mercado dos hipermercados nos EUA.
Só mesmo um inocente útil para acreditar mesmo que é por magia que a Amazon recomenda justamente os livros geek que o consumidor quer ler ou os bonequinhos que gostaria de ter em sua estante. A ideia aqui desde o seu nascedouro é refletir sobre os efeitos e possibilidades criados pelo avanço tecnológico (como a universalização do acesso à internet e dos sistemas de bancos de dados na administração do meio empresarial para o potencial da alocação dos recursos segundo as necessidades humanas) por mecanismos que partam da integração agregada dos dados sobre a demanda da população, de acordo com suas compras/pedidos (ou seja, se padronizarmos e integrarmos as informações QUE JÁ ESTÃO SENDO REGISTRADAS NOS BANCOS DE DADOS DAS GRANDES MULTINACIONAIS OU QUE SERIAM FACILMENTE INCLUÍDOS NELES POIS JÁ SÃO REGISTRADOS NAS OPERAÇÕES DE COMPRA E VENDA) para, então, estabelecer o padrão de consumo atual a cada momento e estimar a demanda final da população por cada produto e serviço em cada período. Alimentar os processos de produção em cada núcleo de produção passa a ser algo completamente dentro da nossa capacidade tecnológica atual. Então, não, rs, os algoritmos não vão precisar de mais superpoderes além dos que já possuem e já são utilizados atualmente. De modo que criamos alternativas ao sistema atual que conserva seus -prós e elimina os vícios e contradições inerentes a ele. Enquanto isso, vai ter seguidores de Mises e Hayek ainda falando sobre como seria impossível “concentrar todo o conhecimento” necessário, sobre como o “conhecimento tácito”, por definição muito localizado e específico, impediria que mesmo sistemas computadorizados de alocação de recursos pudessem fazer isso com eficiência. Parece ou não parece anacronismo? Parece ou não parece que estamos, em 2019, tentando responder a gente cujas ideias e questionamentos estacionaram em 1969, se não em 1949? Como se fôssemos máquinas de cálculo hiperracional para comparação e julgamento de produtos e serviços; como se não fossemos o tempo todo passíveis de manipulação de desejos, como se essa não fosse a base da publicidade e do marketing que nos bombardeiam o tempo todo nos meios de comunicação. Afirmam que não seria possível agregar a demanda das compras de produtos finais num nível suficiente para re-alimentar as metas de produção das indústrias, como se isso não tivesse nada a ver com os modelos JÁ EXISTENTES de logística just-in-time e com os modelos de negócios de gigantes do varejo que transformaram a forma com que as pessoas fazem as suas compras, em hipermercados ou online. Sistemas centralizados de processamento de informações alimentados por sistemas descentralizados de captação de dados - como se não tivéssemos a internet em cada celular e as compras de cartões de débito e de crédito em qualquer esquina; como se isso JÁ não estivesse alimentando sistemas monumentais com os dados de bilhões de pessoas, transações econômicas, pesquisas, interesses e deslocamentos, para disponibilizar serviços de bancos, pesquisas na internet, recomendações, alocação de corridas e de caronas de carro, apartamentos, etc, etc. - todos processados centralmente em servidores de capacidade astronômica (boa parte concentrados nas empresas do Vale do Silício, na Califórnia) e enviados para o uso descentralizado por bilhões de pessoas por todo o globo.
Dessa forma, ninguém vai precisar estabelecer/adivinhar planilhas infinitas de comparação da "utilidade marginal" de cada item existente, para cada indivíduo existente, como pensam ser necessário os defensores da teoria econômica marginalista. Lembrando que, daqui, dá para puxar o fio para estender as críticas ao sistema mostrando como esses conglomerados não simplesmente suprem as necessidades, eles também as criam e produzem padrões de consumo que destoam gravemente de qualquer sensatez no que se refere ao bem da humanidade pensada no todo, mas aqui nos estenderíamos demais, para quem quiser se aprofundar, o livro Capitalism de Anwar Shaikh tem um apanhado extenso dessas críticas, com indicações de leitura complementar sobre cada crítica, sobre cada aspecto. Já vemos se desenhar a capacidade da tecnologia de não apenas conhecer o cérebro e decodificá-lo no panorama da Tecnologia da Computação, mas também como conglomerados como Facebook, Apple e Google conseguirão em 10, 20 ou 30 anos monitorar os corpos com sensores biométricos, registrar esses dados e, com algoritmos sofisticados, analisá-los (falamos somente sobre eles) para saber quem é o consumidor, sua personalidade, suas preferências, quais respostas provavelmente daria a uma pergunta, etc.
Não se trata de (1) propor um modelo com métodos de produção e demanda estáticos, muito menos um em que a descoberta de novos métodos de produção ou adaptação a alterações de demanda seja inibida, mas sim na apresentação de um esquema dinâmica em resposta às alterações de demanda, com apresentação de mecanismos para identificar indústrias que precisem ser reduzidas ou aumentadas, segundo o consumo da população. (2) ampliar o potencial de inovação do sistema atual, diluindo suas limitações e contradições.
Se por um lado a administração de um país precisa envolver variáveis com as quais as empresas hoje não precisam se preocupar, tornando o sistema mais complexo, por outro as empresas multi-nacionais mais gigantescas precisam trabalhar com o planejamento de suas operações, com a definição de planos, metas e ajustes de suas operações gigantescas para buscar atingir esses planos. Estamos falando de empresas que movimentam mercadorias, operações físicas e virtuais, e quantidades de dinheiro que deixam o PIB da maioria dos países na sombra, de longe. Tampouco centralizamos a administração da Economia e, mais do que isso, do próprio Estado, em um Juche, líder, Führer ou Presidente, mas sim em sovietes coordenados que são descentralizados e dinâmicos, como é a própria sociedade. No mais, os autores citados já apresentam algoritmos para realizar o balanceamento das metas de produção dos bens de consumo e dos bens secundários necessários para a sua produção - que representa o nexo ausente na definição de metas de produção no nível de toda a economia para atender às necessidades da população, ao invés das metas hoje estabelecidas por cada empresa para tentarem realizar o máximo de lucro para seus acionistas. Essa é uma possibilidade acessível à humanidade que só cresce e se aperfeiçoa a medida em que evoluímos.
Concedemos, contudo, que a falácia do espantalho, mitos e ideias prontas e anacronismo grosseiro sobre a História das experiências socialistas do século XX não devem ter lugar aqui. Ora, mesmo os autores que indicamos como Cockshott e Cottrell (Vide Economia e Planejamento Soviéticos e as Lições na Queda) e que estudaram profundamente os sistemas que foram estabelecidos na URSS e as variações de seu sistema político e econômico em diferentes momentos históricos vão apontar problemas graves na gestão daquelas experiências, não apenas no final, mas por todo o período. Falemos brevemente disso:
Mesmo esses autores, afirmam categoricamente que um planejamento bem amarrado como o que eles propõem era simplesmente impossível até os avanços tecnológicos na área de comunicações e computação do final da década de 80. Assim, comparar essas propostas atuais com o planejamento implementado nos planos quinquenais da URSS na década de 30 e afirmar categoricamente que os resultados (supostamente totalmente negativos) seriam sempre os mesmos (necessariamente os mesmos) é um anacronismo grosseiro. Alguns autores socialistas, como Meszáros, sequer aceitam afirmar que o planejamento um tanto improvisado e precário praticado naquelas experiências teria representado realmente o potencial do planejamento socialista - não só pelas limitações no modelo de planejamento, mas também pela ausência do controle pelos trabalhadores sobre a produção e o trabalho tanto em nível local quanto em nível nacional. É um debate gigantesco, ainda em aberto.
É preciso também chamar atenção para o fato de que, apesar da experiência soviética ter se encerrado com a crise dos anos 80 e a substituição completa do sistema de produção por um modelo capitalista, isso não significa que o resultado daquela experiência teria de ser necessariamente esse, mesmo com os problemas em seu modelo de gestão. Na verdade, o nível de "sucesso" ou de "fracasso" de algo dessas proporções sempre será uma questão contraditória. Durante décadas, por exemplo, era totalmente comum deparar-se com a opinião dos economistas do ocidente de que a União Soviética havia encontrado um caminho eficiente e seguro para o crescimento em termos absolutos e relativos, um crescimento que não era abalado pelas crises que assolam o capitalismo de tempos em tempos. Por décadas à fio o crescimento contínuo da União Soviética só era superado por milagres capitalistas como o japonês (que, por sinal, depois acabou também entrando numa longa crise de estagnação da qual ainda não se recuperou).
Sim, havia muito de precário e improvisado no sistema de planejamento operado na antiga união soviética. Alec Nove estima que nos anos 70, 80 havia em torno de 10 milhões de produtos diferentes produzidos em seus países - enquanto que a Gosplan, com a tecnologia disponível na época, trabalhava com metas de produção para poucas dezenas de milhares desses produtos. Isso significa que a esmagadora maior parte dos produtos produzidos estava simplesmente fora dos planos centrais de produção. Cockshott e Cottrell já provaram como seu modelo pode dar conta facilmente de uma produção nessa escala de grandeza com a tecnologia disponível atualmente. Na verdade, para os mega-computadores mais poderosos disponíveis atualmente, as técnicas de Cockshott e Cottrell dariam conta de balancear um plano de produção para todos os itens de consumo direto ou indireto para uma economia continental em uma fração de segundos.
Apesar disso, havia a expectativa entre os analistas ocidentais de meados dos anos 60, meados de 70 que tinham expectativa de que a URSS poderia superar os EUA. Relatórios da CIA indicavam que o consumo diário médio de calorias na URSS chegou a estar apenas pouco abaixo da média estadunidense - com o adendo de que a média estadunidense disfarçava as grandes desigualdades existentes no seu interior, enquanto na URSS essa distribuição era mais homogênea - e incluía um nível de universalização da educação com o qual os EUA apenas podiam sonhar, além de empregos, saúde e aposentadoria garantidos para a população. Chegou a haver inclusive pesquisadores ocidentais decididos a provar o quanto a produtividade das empresas socialistas seriam, teoricamente, muito menores do que as suas contra-partes nos países capitalistas - mas que acabaram se surpreendendo ao descobrir que, no final, essas diferenças eram bem menores do que eles antecipavam, mesmo comparando com as empresas dos países capitalistas mais avançados, vide Socialismo, Mercado, Planejamento e Democracia de Seth Ackerman, John Quiggin, Tyler Zimmer, Jeff Moniker e outros
Mas, claro, não estamos aqui afirmando ou defendendo o modelo soviético que, aliás, nem mesmo os partidos comunistas atuais defendem. Veja, por exemplo, a análise do PCB sobre o socialismo do século XX: <https://pcb.org.br/portal/docs1/texto7.pdf>; Estamos apenas chamando a atenção para o fato de que olhar para a história soviética apenas como um fracasso generalizado é muito simplista e não dá conta de lidar com as contradições de todo aquele processo. Uma ironia final nesse sentido é demonstrada no artigo listado acima, de Cockshott e Cottrell, sobre a queda da União Soviética: foi justamente a vitória da ala à Direita do Partido no XX Congresso e a disseminação entre os burocratas soviéticos de ideais reformistas capitalistas a partir do final dos anos 70, dando origem a reformas pró-capitalistas e marcadas pela defesa da expansão do mercado, o que acabou desequilibrando de vez o funcionamento do sistema econômico soviético e lançando todo aquele processo na crise e descontentamento crescente nos anos 80, o que acabou culminando na contra-revolução do fim da URSS, entre 89 e 91.
Outro aspecto desse anacronismo é como ele simplesmente desconsidera o papel completamente central do planejamento para o próprio capitalismo, de maneira declarada (como nas décadas de maior crescimento do capitalismo, no pós-segunda guerra mundial, quando grande parte das economias capitalistas assumiram o papel de controlar diretamente ou de dar a orientação para a produção e isso se converteu inclusive em uma ideologia que se tornou central para o pensamento econômico na época, o "gerencialismo", que acreditava que, por caminhos diferentes, tanto o capitalismo ocidental quanto o socialismo soviético caminhavam na direção de organizações cada vez mais complexas e de administração profissionalizada e burocratizada) quanto de maneira mais velada (como no planejamento realizado atualmente no interior das megaempresas transnacionais ou pelos bancos de investimento), que se infiltram no Estado e o utilizam enquanto recurso escasso que é para se impor sobre a concorrência que não dispôs de mecanismos suficientes para acessá-lo.
Por fim, citando Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado: “Se estivermos falando de uma sociedade em que os meios de produção (fábricas, fazendas, empresas, equipamento pesado, núcleos de processamento de dados, etc.) forem usados em conjunto pela sociedade, em nome da satisfação das necessidades de todos (e não dos lucros de uma minoria e do crescimento infinito a qualquer custo, como na sociedade atual) então poderemos aplicar ao máximo todas as nossas tecnologias para produzir tudo de que precisamos com o mínimo de trabalho humano possível, liberando o máximo de tempo possível para todos usarmos como acharmos melhor, cultivando e perseguindo nossos interesses, produzindo e consumindo artes, avançando com pesquisas em ciências, participando de projetos coletivos e de sua implantação, praticando esportes, viajando, passando mais tempo com as pessoas que amamos, etc. Sem as amarras da necessidade do lucro, do consumismo, da expansão infinita, poderemos usar nossos recursos produtivos de maneira realmente racional, humana, democrática e sustentável, e não precisaremos abandonar ninguém à condição de "inútil" do desemprego ou da pobreza; não precisaremos manter uma sociedade de controle e repressão; poderemos expandir a liberdade para todos, e poderemos finalmente lidar com a questão do meio-ambiente e das mudanças climáticas como necessário para impedir algum tipo de cataclisma, impondo limites e transformações nos processos de produção, decididos democraticamente, de acordo com o conhecimento científico vigente - limites e transformações que o Capitalismo não pode aceitar, por que precisariam ser aplicados em alguns dos seus elementos mais centrais (autoexpansão infinita, consumismo, obsolescência planejada, etc), e que seriam necessários para lidar com isso à sério. O objetivo final deve ser a construção de um Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado; a alternativa, se não formos capazes de construí-lo, algum tipo de barbárie de exploração e de alienação - mais desnecessários ainda do que o foram nas várias etapas do capitalismo - isso para nem entrar em todas as desgraças relacionadas à aceleração das mudanças climáticas (pois, apesar da fé capitalista no crescimento e na expansão infinita ser realmente muito grande, ela não muda o fato de que o planeta Terra é um sistema finito).“
A Esquerda parte de um pressuposto: O de que o dever da Economia (enquanto estudo sistemático da escassez) é instituir um regime de Felicidade, regozijo, união e cooperativismo entre os povos... O que desembocaria numa sociedade cada vez mais coesa e preocupada com o bem-estar uns dos outros, dos animais, das plantas e do meio ambiente. Acreditamos que é preciso reinventar nossas sociedades porque o objetivo do Espírito humano não é trabalhar e entrar na rodinha do hamster. O nome disso é bestialização. O ser humano é muito mais do que um consumidor... um produto que ora usa, ora é usado. Acreditamos que é preciso transformar as engrenagens capitalistas num motor de promoção do Bem dos povos e da Felicidade de cada indivíduo... e que a evolução moral atingirá seu ápice quando os seres humanos perpetrarem uma busca incessante por maior desenvolvimento tecnológico não para competir no mercado e, sim, pra tornar o ócio cada vez mais acessível à população do mundo, que liberta do escravismo, dessa busca incessante pelo Ter ou pelo Ser. Que se possa se preocupar mais com o Bem-Estar.... Essa foi a justificativa dos políticos quando votaram para a redução da jornada de trabalho na Suécia de 8 pra 6 horas diárias.... Este é o conceito que permeia todos os nossos discursos, a busca incessante por Libertar a alma humana das amarras materialistas no aspecto de sua própria essência e vivência - o social - fazendo ascender um mundo Progressista multicolorido em que estaremos todos rodeados por diversidade, diferenças, mas, todos nos sentiremos unidos e iguais não apesar dessas diferenças, mas, sim, por causa delas.... Toda essa coesão refletirá na forma como experimentamos as relações econômicas uns com os outros e com o Estado que ergueremos sobre nós mesmos com o intuito de cuidar desse mundo.

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